Lugar de Mulher é no Automobilismo

Conheça a história de duas mulheres inspiradoras que trocaram as arquibancadas pelas pistas
Por muitas décadas, o automobilismo foi considerado um esporte masculino, mas em 11 de junho de 1897, na França, oito mulheres decidiram realizar uma corrida entre elas, a bordo de triciclos motorizados. A ideia surgiu trinta anos após o início das corridas automobilísticas no país. De acordo com registros, Léa Lemoine foi a primeira a vencer no esporte a motor e abrir caminho para mulheres no automobilismo. Desde então, a luta por espaço no esporte segue inspirando o público feminino de todos os lugares do mundo.
Aqui no Brasil não é diferente. Temos centenas de mulheres inspiradoras em diferentes competições e categorias. Tivemos o prazer de conhecer a história de duas pilotos de Arrancada – uma competição esportiva com veículos originais ou preparados, que tem como objetivo completar o trajeto reto e nivelado no menor espaço de tempo. Apertem os cintos e confiram com a gente um pouco da trajetória brilhante de Ana Merçoni e Juliana Cordeiro.
Ana Merçoni é mãe, empresária, mecânica, piloto detalhista e muito persistente. Adora um desafio, principalmente quando o assunto é velocidade. “A arrancada me faz feliz, me ajudou nos meus maiores momentos de tristeza e hoje para mim, é muito mais do que uma competição, é uma hora de relaxar, de me conectar comigo mesma”, conta. Piloto de arrancada há três anos, carrega o amor pela velocidade há vinte, desde a época em que conheceu o marido e também piloto, Jeferson Merçoni. “Quando conheci meu esposo, ele participava de arrancada de moto e logo após algum tempo, adquiriu um carro turbo. Após a aquisição do veículo, eu comecei a ter a vontade de acelerar. Foi nesse momento que percebi que assim como os homens, também tinha potencial para ser uma piloto”, explica.
Ana iniciou no mundo da Arrancada em 2019 a bordo de um Chevette turbo pela lista 55. “Iniciei com um Chevette, em 2020 comecei a competir pela categoria DTR com um gol e no final de 2021 estreei com meu novo carro pela DTA Light”, conta. Participante ativa, Ana coloca a mão na graxa fazendo parte de todo o processo de preparação do veículo.“Nós temos uma mecânica que faz carros de arrancada, a Merçoni Motorsport. Nós fazemos os carros dos nossos clientes e os nossos também”, explica.
Mesmo tendo apoio da família, Ana já enfrentou muitos desafios para permanecer nas pistas. A condição financeira e a falta de patrocínio já fizeram com que ela pensasse em desistir, mas o amor pelo automobilismo falou mais alto. “Minha família é tudo, eles estão sempre comigo me apoiando. Acredito que sem eles, eu já não estaria mais fazendo isso. A arrancada é um esporte caro e muitas vezes não tem ajuda de patrocínio. Mesmo com diversos empecilhos, o automobilismo é o meu trabalho, minha fonte de renda, meu lazer. Ele me ajuda no lado psicológico, me faz ter paz naqueles segundos que estou na pista”, conta.
Além das dificuldades nas pistas, Ana precisou enfrentar uma grande batalha na luta pela vida. “A covid foi uma das maiores provas que já tive, foram 15 dias internada. Naquele instante aprendi que devemos dar valor para os pequenos momentos da vida, momentos com a família e com os amigos. Aprendi que os bens materiais não valem nada”, explica. Devido a recuperação, a piloto precisou ficar afastada do seu esporte favorito. “Foram alguns meses afastada, recebi alta do hospital em junho e voltei a competir em outubro. Poder retornar e ver o meu carro pronto, poder estar na pista novamente só me fez ter gratidão, um sentimento de alegria e de agradecimento a Deus por tudo”, lembra.
Além do apoio e incentivo da família, Ana sempre contou com a admiração e o respeito de seus adversários. “A sensação de competir com homens é de igualdade, pois, dentro da pista somos iguais e nunca houve nenhum tipo de preconceito por eu ser mulher, muito pelo contrário, sempre teve respeito e admiração”, conta. Para as mulheres que sonham um dia entrar no esporte, Ana deixa um recado: “Nunca desistam dos seus sonhos, as vezes pode parecer que não vai dar certo, que vai ser difícil, mas tem uma coisa que aprendi que são as horas certas. Quando for a hora certa, o sonho de vocês vão se realizar. Sempre tenham atitude e nunca deixem ninguém rebaixar vocês por serem mulheres, vocês são capazes”.
Assim como a Ana, Juliana Cordeiro trocou a arquibancada pelo asfalto ao conhecer o marido e também piloto, Gian Gavasso. “O automobilismo entrou na minha vida através do meu esposo. Ele sempre foi apaixonado por arrancada, principalmente pelos carros preparados. Foi ele quem me apresentou. Até então, o automobilismo era uma coisa distante para mim”, conta. Ao acompanhar o marido constantemente nas competições de arrancada na terra, uma modalidade disputada fora do asfalto, Juliana passou a se familiarizar com o esporte, mas ainda não se via competindo. “Meu esposo tinha um Gol na época, ele ia para a arrancada e eu sempre de telespectadora. Nunca havia me imaginado no meio desse mundo apesar de achar muito legal. Na época, já haviam algumas meninas que participavam, algumas não, acho que era uma só”, recorda.
Em 2016, Gian preparou uma Marajó para as competições e convidou Juliana para participar como piloto. “Quando a nossa marajó ficou pronta, o meu marido disse que era para eu competir. Falei que não, mas na mesma semana do evento, eu tinha uma consulta com o meu psiquiatra, porque na época, eu estava sofrendo muito com crises de ansiedade. Chegando lá, o médico informou que não ia mais aumentar a dosagem da minha medicação. Ele me aconselhou a procurar algo que eu gostasse de fazer para extravasar a minha adrenalina que estava acumulada. Foi então que pensei em tentar competir. E não deu outra, foi paixão à primeira vista”, conta.
Desde então, Juliana não parou de acelerar. “O nosso carro foi programado para andar na categoria turbo traseira na Arrancada na Terra, mas eu também já competi na categoria penélope, uma modalidade onde a única exigência da categoria é ser piloto mulher, depois disso, fomos evoluindo para o asfalto. Andamos na categoria desafio 75, e por último, participamos da lista da área 41. Fiquei de 2020 a 2021 na lista da área 41. Me mantive lá até o ano passado quando acabei tirando o carro para fazer algumas modificações”, explica.
Mesmo existindo inúmeros desafios no automobilismo, desde o início, o principal adversário de Juliana foi ela mesma. “O meu maior desafio, na verdade, foi acreditar em mim mesma. Nem eu acreditava que pudesse chegar tão longe. Eu pensava que não ia conseguir fazer tudo o que precisava ser feito para ter uma largada perfeita. Eu não acreditava que fosse capaz”, recorda. Aos poucos, ela foi percebendo o grande potencial que tinha dentro das pistas e sagrou-se como a primeira mulher a passar de fase em um Armageddon – evento que reúne os carros mais rápidos de todas as listas do Brasil. “Uma das minhas maiores conquistas foi ter me tornado a primeira mulher a passar na primeira fase do Armageddon. Fui para o Armageddon de Campo Grande em 2020. Tinham cinco meninas participando do evento, e fui a única que passou de fase eliminando o Santana 4×4 da área 43, foi uma grande conquista para mim”, lembra.
Além desse grande feito, Juliana carrega em sua carreira um recorde conquistado na arrancada na terra. “O meu recorde foi conquistado na categoria penélope na arrancada na terra. Consegui realizar o trajeto em 7.8 segundos”, conta. Prestes a começar a competir na arrancada de asfalto, Juliana fala da importância e do aprendizado que conquistou durante os anos que competiu na terrinha. “Costumo dizer que a arrancada na terra é uma escola para pilotos. O meu carro, por exemplo, por ser um veículo de tração traseira, aprendi a tocar ele na terra. Então, o asfalto para mim, ficou muito mais fácil. Vários pilotos começaram na arrancada na terra. A terrinha é uma verdadeira escola. Aprendi muito, não quero deixar de andar, apesar de o meu carro após as modificações estar mais para o asfalto, sempre digo que a arrancada na terra é incrível de se participar”, fala.
Mesmo tendo uma rotina agitada, Juliana garante que não é difícil conciliar a vida profissional e pessoal com o automobilismo. “Não é muito difícil conciliar a minha vida de piloto com o meu trabalho. Eu e meu marido somos proprietários da empresa JG Guinchos e Cegonhas. Nós já estamos no meio do automobilismo no trabalho e 80% dos nossos clientes são de competições. Então quando vamos para as arrancadas ficamos observando, se sobrar uma vaga no caminhão, colocamos o nosso carro junto para participar. Quando não tem vaga, vamos para torcer”, explica.
Presente em todas as esferas do seu negócio, Juliana conta que além de cuidar da parte financeira, administrativa e burocrática também está sempre pronta para pilotar um dos caminhões quando é necessário. “Se precisar de motorista no final de semana para levar os carros, às vezes eu preciso assumir um dos caminhões e cair na estrada também. Volta e meia isso acontece. Como gostamos, nem é um trabalho, mas uma diversão. É uma coisa muito gostosa. Vai a família toda junto, meu marido e meus filhos, então fica muito fácil”, conta.
Mas isso não é tudo, além de ser mãe, esposa, empresária e piloto, Juliana também é a idealizadora da página “Mulheres na Arrancada”, um perfil no Instagram voltado para a divulgação e incentivo da participação do público feminino no automobilismo. “Quando iniciei nessa vida de piloto, sempre incentivei as meninas a irem para as pistas. Eu pensava que precisava fazer com que outras mulheres também sentissem essa adrenalina, o poder de você estar com o controle do carro nas suas mãos. Então comecei a chamá-las no boca a boca mesmo quando eu ia nos eventos”, recorda.
Devido à falta de divulgação referente a participação de mulheres na arrancada, Juliana nem imaginava a quantidade de meninas que já competiam. “Quando fui no Velopark e conheci as meninas que andavam no asfalto, fiquei impressionada com a falta de divulgação sobre isso. Vi que muitas meninas participavam, mas não via nada falando a respeito. Comecei a pesquisar e achei mulheres em outras regiões do país. Foi nesse momento que pensei que deveria fazer algo para mudar isso”, conta. Foi exatamente essa inquietação que motivou a criação da página que hoje já conta com mais de 5 mil seguidores. “Graças a Deus, hoje temos muitas meninas começando ou que foram incentivadas a começar através da página”, diz.
Empolgada com o resultado positivo que o perfil vem conquistando, Juliana se prepara para realizar o primeiro evento de arrancada 100% feminino do Brasil. “Em dezembro do ano passado foi realizado um rachão, uma espécie de corridas proibidas com pista liberada com cronometragem. Na ocasião, reunimos mais de 80 meninas em Interlagos. Agora, estou planejando a arrancada. Serão por categorias, carros de todos os tipos. Teremos premiação do 1º ao 3º lugar de cada categoria”, explica. A competição que irá movimentar o público feminino apaixonado por velocidade acontecerá no dia 17 de setembro em Balneário Camboriú. “É um sonho para mim, porque eu sempre desejei e muitos falavam que não seria viável fazer um evento desse, mas parece que agora vai dar certo. Tem muitas meninas empolgadas para andar, acredito que será um sucesso”, afirma.
Enquanto aguarda ansiosamente a chegada do evento, Juliana deixa um recado para as mulheres que ainda não se aventuraram no automobilismo. “Assim que vocês tiverem a oportunidade de estarem na pista, não pensem duas vezes. Às vezes a gente precisa apenas do pontapé inicial para poder sentir a verdadeira velocidade. Depois disso, é seguir em frente, e nunca desistir”. É assim, com as palavras de encorajamento de Juliana, que encerramos essa matéria. Que tenhamos conseguido mostrar a importância que o automobilismo desempenha na vida de quem se deixa desafiar por ele. Seja nas arquibancadas ou nas pistas, desejamos que a velocidade siga contagiando cada vez mais, e que o amor por essa adrenalina permaneça presente nas futuras gerações.
Texto: Fernanda Pereira